top of page

A travessia: O Êxodo como arquétipo, o Brasil e a Linguagem da Liberdade

  • Foto do escritor: Jorge Augusto Derviche Casagrande
    Jorge Augusto Derviche Casagrande
  • há 20 horas
  • 4 min de leitura


Para mim, muitas das histórias que aprendemos desde tenra idade exercem um papel profundo — são fontes duradouras de inspiração, e devem continuar inspirando, independentemente de alguém professar a fé judaica, cristã ou qualquer outra. A escravidão, a intervenção divina, a negociação diplomática protagonizada por Moisés e seu irmão Aarão com o imperador egípcio — enquanto figura do poder constituído —, as pragas lançadas contra o império opressor, o mar que se abre para permitir a fuga, a travessia do povo hebreu rumo ao deserto árido, a dor, a esperança… tudo isso compõe um dos mais potentes símbolos de ruptura com a opressão que a cultura ocidental não apenas herdou, mas uma história repetida que toma uma marca indelével naqueles que tem contato com ela.


Estimado por cientistas como um evento ocorrido entre 1260 e 1230 a.C., no calendário gregoriano, o Êxodo é um desses episódios que ganham contornos maiores do que sua própria historicidade. Tornou-se arquétipo. E é por isso que ele resiste aos tempos — não apenas nas sinagogas durante o período de Pessach (que, por sinal, se inicia no próximo dia 12) — mas em toda reflexão sobre liberdade, dignidade e resistência. Porque ali se encontra algo que vai muito além do campo religioso: encontra-se um dos mais antigos registros de um povo que ousou romper com um sistema de dominação.


Segundo a tradição, os hebreus deixaram o Egito após um longo período de servidão. Não houve revolta armada. Não houve conquista militar. A libertação ocorreu após uma série de pressões que desestabilizaram a autoridade central e obrigaram o faraó a recuar. Na Torah alegoricamente retratadas como as pragas. Mas, independentemente de crermos ou não nas pragas, é marcante que o gesto decisivo de coragem partiu do povo: foi ele quem escolheu partir e enfrentar o deserto. Aceitou os riscos da travessia, a dureza do deserto, o vazio do futuro — em troca de algo que nenhuma potência opressora consegue conceder voluntariamente: liberdade.


Esse movimento — abandonar uma estrutura opressiva sem saber o que virá em seguida — é uma constante na história humana. E é também uma das mais difíceis decisões coletivas. O conformismo e a sobrevivência costumam parecer preferíveis ao enfrentamento do desconhecido. Mas há momentos em que o preço da servidão supera o medo da mudança. O Êxodo representa esse ponto de inflexão.


Hoje vivemos sob formas de opressão menos visíveis, mas não menos eficazes. Sistemas tributários que consomem a maior parte do esforço produtivo. Estruturas normativas que impõem o silêncio sob o disfarce da civilidade. O exercício contínuo de um cálculo de sobrevivência: avaliamos o que podemos dizer, quando, e de que forma podemos nos manifestar. A fadiga moral se instala. Dispositivos de controle institucional reduzem o espaço do pensamento crítico e transformam em suspeita qualquer tentativa de resistência — seja fiscal, política ou cultural. A liberdade, que deveria ser o alicerce de qualquer ordem legítima, tornou-se uma exceção tolerada, cuidadosamente administrada.


A lição do Êxodo, lida sob a lente histórica, é clara: não se trata de esperar por milagres, e sim de reconhecer quando um sistema já não serve ao ser humano. A ruptura, às vezes, é a única via ética. Não é simples. Nunca foi. Mas é esse gesto que funda novos começos. Que escreve novas linguagens. Que redefine o que uma sociedade tolera ou recusa.


Revisitar o símbolo de Pessach, portanto, não é retornar a um passado religioso — é iluminar uma metáfora histórica que ainda fala conosco. O Êxodo representa o momento em que um povo oprimido rompe com um sistema insustentável e se recusa a continuar sustentando, com seu trabalho e sua obediência, uma ordem que o explora.


No Brasil de hoje, essa metáfora encontra eco em uma realidade concreta: a verdadeira luta de classes não se dá entre ricos e pobres, mas entre o setor produtivo e o aparato governamental que dele se alimenta. O Estado, cada vez mais obeso, arrecadador e vigilante, opera como uma nova casta dominante que sufoca o empreendedorismo, desincentiva o mérito e criminaliza a autonomia. Enquanto isso, quem produz, emprega, investe e sustenta a máquina pública é tratado como suspeito, submisso, ou descartável.


Nessa analogia, os judeus do Êxodo são o setor produtivo da sociedade — aqueles que, mesmo sob opressão, continuam a carregar o sistema. Mas como naquele tempo, chega um momento em que é preciso dizer não. Romper com o conformismo, deixar para trás o conforto amargo do cativeiro, e enfrentar o deserto — com coragem. Não haverá milagre, mas haverá travessia. E nela, quem ousa resistir à dominação, mesmo solitário, abre caminho para muitos.


A liberdade não é um status político: é uma escolha contínua — e, muitas vezes, solitária. Cada geração é colocada diante da mesma encruzilhada: aceitar os grilhões que se tornam invisíveis pela repetição, ou romper com eles e seguir, mesmo que isso exija atravessar o deserto da insegurança e do confronto. O Brasil está, hoje, nessa encruzilhada.


Como alertou John Locke, “onde acaba a lei, começa a tirania”. E aqui, a lei já não é a medida da justiça, mas da conveniência. Vemos um Estado que se recusa a obedecer às suas próprias normas enquanto cobra obediência irrestrita de quem o sustenta. Um sistema que criminaliza o questionamento, fere liberdades, pune a autonomia e destrói o mérito. Isso não é democracia — é dominação burocrática, com aparência institucional. E a escravidão? Bem, basta ver o quanto isso nos custa, seja diretamente ou indiretamente.


De divina, a intervenção deve ser humana. Pois é o humano quem deve interpretar o divino, traduzir o que habita o mundo das ideias — como ensinava Platão — e realizá-lo aqui, no plano terreno. O milagre, se vier, será obra da ação consciente. Seremos nós os que abrirão o mar — não por decreto celeste, mas por decisão moral, por recusarmos a condição de servos, mesmo enquanto somos destruídos sistematicamente pelo próprio dispositivo que sustentamos. Como ensinou Ayn Rand, a servidão não é uma opção legítima — e submeter-se à dominação é trair a própria humanidade.


O setor produtivo tornou-se o novo povo hebreu: alimenta o sistema, mas não é ouvido. Trabalha, mas é punido. Progride, mas é perseguido. Não pode mais aceitar esse papel. A travessia é difícil, mas necessária. O deserto, por mais árido que pareça, ainda é preferível ao conforto anestesiado da servidão. O tempo de caminhar chegou — e já não há espaço para o medo quando o que se vislumbra à frente é o precipício da sua destruição total.





 

1 Comment


Jot Der
Jot Der
há 7 horas

Excelente analogia com o que viveram os hebreus e com que vivemos hoje.

Like
bottom of page