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Desarmaram a advocacia — e quase ninguém reagiu

  • Foto do escritor: Jorge Augusto Derviche Casagrande
    Jorge Augusto Derviche Casagrande
  • há 7 dias
  • 4 min de leitura

Iguais no papel: Enquanto juízes e promotores andam armados, os advogados que necessitam de defesa pessoal seguem alvos fáceis — por inércia ou por conveniência

Há um direito constitucionalmente reconhecido, historicamente praticado e institucionalmente lógico que foi silenciosamente retirado da advocacia brasileira nas últimas duas décadas: o direito ao porte de arma de fogo para fins de legítima defesa. E o mais grave não é apenas a subtração em si — é o silêncio da classe diante dela.

 

Durante décadas, o porte de arma por advogados era viável, ainda que por vias administrativas, reconhecendo-se o papel essencial da profissão na administração da Justiça e a paridade prevista na Constituição entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público. Havia um entendimento objetivo: se juízes e promotores, pelo risco inerente à função, podem portar armas, advogados — que enfrentam os mesmos ambientes, as mesmas ameaças e a mesma tensão social — também devem poder.

 

Mas veio o Estatuto do Desarmamento. E com ele, uma guinada interpretativa autoritária e seletiva. Importa lembrar: o Estatuto não foi referendado pela população. O plebiscito realizado em 2005 rejeitou, de forma expressiva, as bases do desarmamento civil. Mesmo assim, contra a vontade popular, o desarmamento foi imposto em quase toda sua integralidade — e, onde a letra da lei não alcançou, impôs-se por via transversa: através de instruções normativas e análises administrativas enviesadas por agentes da Polícia Federal.

 

Em outras palavras, a classe foi desarmada não por força de lei, mas por uma política institucional informal, sustentada por interpretações restritivas, personalistas e ideológicas de quem, no âmbito da PF, podia decidir, com discricionariedade quase absoluta, quem teria ou não o porte de arma. E aos advogados, negou-se sistematicamente, sem critério republicano e em afronta ao espírito do texto constitucional.

 

O que era uma autorização com razoável previsibilidade tornou-se uma exceção negada por princípio. E assim, de forma burocrática, o Estado desarmou a advocacia — sem mudar a Constituição, sem revogar prerrogativa alguma, sem consultar a classe.

 

Outro fator que não pode ser ignorado é o histórico alinhamento ideológico da cúpula da OAB com valores tradicionalmente associados à esquerda, entre eles o desarmamento civil, sempre defendido como mecanismo de “ordem institucional” — ainda que, na prática, isso signifique enfraquecer o indivíduo e fortalecer o Estado. Essa visão jamais representou a maioria da advocacia, composta por profissionais que exercem suas funções em condições precárias, em comunidades vulneráveis, em zonas rurais ou em regiões dominadas pela violência.

 

A verdade é que a cúpula da Ordem, composta por dirigentes que vivem entre seus escritórios nas capitais e os salões refrigerados de Brasília, não tem a menor noção do que é viver a advocacia militante no campo, na periferia ou no interior do Brasil profundo. São profissionais que atuam em uma bolha de conforto e segurança institucional, completamente alheios à realidade dos colegas que enfrentam ameaças reais — de clientes, de facções, de conflitos fundiários, ou até do próprio Estado. É por isso que não se sensibilizam com o tema. Não entendem o risco porque nunca o viveram. E por isso nada fizeram quando a Polícia Federal, usando o Estatuto do Desarmamento como desculpa, passou a negar sistematicamente os pedidos de porte de arma por advogados.

 

A consequência foi nefasta: enfraqueceu-se uma categoria que já vinha sendo pressionada por todos os lados — por magistrados autoritários, por promotores persecutórios, por governos hostis, por clientes violentos, por facções criminosas. E ninguém se levantou. A OAB nacional silenciou. O Conselho Federal não lutou. Os tribunais superiores não se importaram. A subtração foi completa, e a resistência, quase nula.

 

É nesse contexto que ressurge, com legitimidade, o Projeto de Lei 2734/2021, que visa restaurar formalmente o direito da advocacia ao porte de arma de fogo para defesa pessoal. No entanto, mesmo diante de tamanha evidência empírica e respaldo constitucional, o projeto foi abruptamente paralisado por um pedido de vistas do senador Sergio Moro, sob o pretexto de “analisar melhor o alcance da norma”. A manobra, embora revestida de tecnicalidade, soa como puro esvaziamento político. Em vez de enfrentar o mérito, adia-se o debate. Em vez de proteger a advocacia, protege-se a própria vaidade parlamentar. E, mais uma vez, os riscos concretos enfrentados pela classe são tratados como nota de rodapé.

 

A necessidade de autodefesa não é teórica — é uma urgência real e documentada. Eis apenas alguns dos casos recentes de advogados brutalmente assassinados no exercício da profissão:

 

 • Rodrigo Marinho Crespo (RJ, 2024), morto a tiros no centro do Rio, próximo à sede da OAB-RJ.

 

 • José Lael de Souza Rodrigues Junior (SE, 2024), morto em Aracaju.

 

 • Renato Gomes Nery (MT, 2024), ex-presidente da OAB-MT, morto em frente ao seu escritório.

 

 • Charlesman da Costa Silvano (GO, 2023), emboscado e morto em Alexânia.

 

 • Valdenice Gomes Celestino Soares (PI, 2025), assassinada no município de Paulistana.

 

Esses nomes não são estatísticas. São colegas de profissão, mortos enquanto atuavam. E a pergunta que fica é: quantos mais precisarão tombar até que se reconheça que o porte funcional não é um privilégio, mas um instrumento de proteção constitucionalmente compatível com o exercício da advocacia?

 

A advocacia precisa reencontrar sua coragem e a OAB precisa parar de peleguismo e escutar o advogado militante. Precisa se lembrar que é parte fundante do equilíbrio institucional. A Constituição é clara: não há hierarquia entre os sujeitos da justiça. Onde o juiz puder entrar armado, o advogado também deve poder. Onde o promotor tiver prerrogativas, o advogado deve estar em igualdade.

 

Chegou a hora de exigir mais do que discursos de ocasião. Não basta lamentar a perda do porte. É preciso enfrentá-la com a firmeza que a Constituição exige e que a história espera. O que está em jogo não é o coldre na cintura — é o lugar que a advocacia ocupará na engrenagem da Justiça nos próximos anos: de cabeça erguida ou ajoelhada.




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